Nesse ‘pileque homérico no mundo’, vamos falar sobre coisas boas

Certamente não é prioridade minha, mas é bom compartilhar sentimento. As notícias sobre a guerra comercial, tarifas versus tarifas, andam me deixando com uma enorme vontade de abandonar tudo e ir para o campo plantar batatas. Aliás, ontem à noite eu terminei de ver o dorama “Amor e batatas,” muito bom, recomendo para quem, como eu, não consegue dormir levando para a cama histórias da esperteza de Mr. Trump, que muitos, erroneamente, chamam de loucura. Não, loucura não é isto. O que este homem está causando ao mundo é coisa ruim.

A foto é só para ilustrar. Um beleo pôr do sol na Lagoa Rodrigo de Freitas. Vida em movimento. Foto: Amelia Gonzalez

Na rede social de uma amiga, revi o momento em que Chico Buarque e Gil são censurados, microfones desligados no palco, enquanto cantavam “Cálice” (daí me veio a ideia no título. Querem coisa mais atual do que o mundo num ‘pileque homérico’?). Idos de 1973, ditadura a mil.

Mas, ao dar aquela já cansada passada de olhos pelos jornais, quase certa de que nada vai me surpreender, ontem (10) eu me surpreendi. E foi uma surpresa boa, o que me deixa mais feliz e com vontade de dividir com os leitores.

O sisudo “The New York Times”, jornal que remonta ao fim do século XIX e que em 2023 tinha 9,13 milhões de assinantes, deu espaço a uma jornalista para que ela passe a viajar pelos 50 estados em busca de soluções climáticas locais pensadas e postas em práticas por pessoas comuns. Ou seja: boas notícias! A sessão começou ontem, e tem uma pequena entrevista de apresentação, na qual a repórter Cara Buckley  conta porque decidiu propor a empreitada aos seus editores.

Segundo Buckley, certa vez, fazendo reportagem sobre mudanças climáticas, ouviu de um entrevistado:

“Nós lemos todas essas notícia ssobre emissões, sobre partes de milhão de carbono no ar, mas estamos perdendo essa outra parte da história: muitas pessoas estão fazendo um bom trabalho. Só que não vemos muitas notícias a respeito”.

Foi este o impulso que levou Cara Buckley a criar a seção “50 estados/50 soluções”, que ontem me animou a manhã com algumas histórias interessantes. Há, por exemplo, a reportagem sobre Culdesac Tempe, no Arizona, um bairro que está sendo construído a cerca de 3,2 km do centro da cidade de Tempe para mil pessoas que queiram mudar de vida. Porque lá não há carros. E, obviamente, um bairro sem carros constroi um outro tipo de relação entre as pessoas e o ambiente ao redor.

“É uma das melhores coisas que podemos fazer pelo clima, saúde, felicidade, baixo custo de vida, mesmo baixo custo para o governo. É também um estilo de vida muito melhor. Todos nós nos tornamos a pior versão de nós mesmos quando estamos sobre quatro rodas”, disse Ryan Johnson, o chefe do Culdesac.

Há outros casos interessantes na reportagem inicial da série, como um terreno baldio no Hawai que foi adotado pelos moradores e se tornou um local de saúde. Pessoas passam um tempo do seu dia lá, plantando e colhendo, fazendo terapia com a natureza. Longe das telas e do pânico.

A ideia da jornalista, na verdade, não é nova. E me levou a 22 anos atrás, quando o então editor executivo do jornal “O Globo”, Agostinho Vieira, me chamou em sua sala para sugerir que eu editasse um caderno que estava ainda para ser formatado. A ideia era mostrar projetos bem-sucedidos de empresas grandes,  médias e pequenas que podem ser chamadas de “socialmente responsáveis”. Pouco tempo depois, em junho de 2003, a primeira edição do “Razão Social” ia para as bancas. Na capa, a história de uma padaria no Rio Grande do Sul que ajudava a creche do bairro e insuflava seus funcionários a fazerem o mesmo.

O “Razão Social” viveu nove anos. Nesse tempo, tive uma equipe danada de boa. Os jornalistas Camila Nóbrega, Cristiane de Cássia, Martha Neiva Moreira e Carlos Ivan. Acompanhamos passo a passo o movimento das empresas cidadãs, que cresceu muito, arrefeceu na crise financeira de 2008, teve outros tropeços e, em muitos casos, foi abduzido pelo marketing. A linha editorial do “Razão Social’ foi se adaptando aos tempos, trazendo a questão climática para a cena, convidando especialistas que explicavam o contraditório.  O papel das corporações que, num sistema capitalista, existem para dar lucro e, ao mesmo tempo, são cobradas para dividir esse lucro com a sociedade.

Neste longo caminho, li muitos autores que foram me ajudando a entender melhor o movimento, sobretudo a não cair na tentação de apontar vilãos e mocinhos só pelo papel que estão jogando na sociedade. O poço é mais fundo.

 Joel Bakan, que escreveu e editou os vídeos “The Corporation” (2005)  e “The New Corporation” (2020), foi um desses autores que me acompanhou. O escritor americano-canadense diz que as empresas cumprem o papel que se espera delas no sistema econômico capitalista: dar emprego e lucrar. Há desvios, até porque elas são muito menos reguladas do que deveriam ser. Mas, de verdade, elas ocupam o espaço que damos a elas em nossas vidas. Por isso é importante um estado forte.

Dessa forma, fui entendendo que os bons projetos beneficiam muita gente e tornam-se boas notícias, que merecem ser publicadas. Foi esta a linha editorial do “Razão Social”. Mas, sempre, publicando no mesmo espaço as ideias de autores que nos ajudavam a ir entrelançando, desenhando o caminho das informações. Explicações abrangentes, ajudando a ampliar o pensamento.

Enfim… foi muito bom fazer contato com o material que ontem estava nas páginas de um dos maiores jornais do mundo. No “Razão Social” também publicávamos muitas histórias transformadoras, pessoais, de comunidades, aldeias. O entrelaçamento era nosso mote. Hoje me senti parte de uma história.

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About ameliagonzalez848

Produtora de conteúdo. Jornalista especializada em sustentabilidade. Ajudou a criar e editou durante nove anos o caderno Razão Social, suplemento do jornal O Globo, sobre sustentabilidade, que foi extinto em julho de 2012. Assinou a coluna Razão Social do caderno Amanhá, de O Globo. Autora do livro `Porque sim`, sobre casos de sucesso da ONG Junior Achievement. Ganhou o premio Orilaxé, da ONG Afro Reggae. Esteve entre as finalistas como blogueira de sustentabilidade no premio Greenbest com o blog Razão Social, que foi parte do site do jornal O Globo de 2007 a 2012. Foi colunista do site G1 de 2013 a 2020, assinando o blog Nova Ética Social. Estuda os filósofos da diferença, como Fredrick Nietzsche, Gilles Deleuze, Spinoza, Henri Bergson em grupos de estudo no Instituto Anthropos de Psicomotricidade. Crê na multiplicidade, na imanência, na potência do corpo humano e busca, sempre, a saúde. Tem um filho, um cachorro.
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