Fernanda é uma garota muito esperta.
Tem 5 anos, mas parece que tem mais. É tão esperta que um dia, caminhando pelo bairro e conversando comigo, ouviu atenta até franzir o cenho quando eu disse que as pedras são seres vivos e que respiram. Estávamos passando por um muro de pedra que tem pequenas elevações, Fernanda passou as mãos com cuidado numa dessas elevações, ficou um tempo calada e decretou:
“Então esta é a barriga da pedra”.

Ficamos assim combinadas, aquela pedra, um ser vivo, estava mostrando sua barriga para nós duas. E a conversa continuou. Eu tinha acabado de ler, no site Doomsday Clock , aquele que revela quanto tempo falta para o fim do mundo, que estamos a 89 segundos da falência. É isso mesmo: conte vagarosamente até 89, é esse o prazo. Os cálculos são feitos por pessoas que não recebem nada para fazer um apanhado geral dos riscos que a humanidade está correndo.
A proximidade de uma guerra nuclear é o risco mais elevado no momento. E, é claro, a posse de um presidente negacionista na nação mais poderosa, a favor de atos violentos como algemar pessoas e mandá-las para seus países em aviões sucateados, é um fator que colabora para a sensação de insegurança, medo, vergonha, sei lá. Só sentimentos ruins.
Claro que eu não me excedi no relato, não vinha ao caso. Fernanda é, apenas, uma criança. Mas a geração dela vai herdar essa bagunça toda, e fico na torcida para que tenham sensibilidade, subjetividade, criem valores novos e fujam de tudo o que possa ser banal.
Que tal começar fazendo contato com a ecologia dos saberes? É uma expressão criada por Boaventura de Sousa Santos, replicada por Aylton Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”.
Busquei o livro, aqui na estante, e fiquei quase surpresa: sem saber da teoria, Fernanda estava praticando, justamente, a ecologia dos saberes ao dar um nome de órgão humano à protuberância da rocha.
Vejam o que diz Krenak:
“A ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade”.
Tomara que Fernanda siga assim, nessa importante integração.
Para isso, precisa sse sentir mais à vontade, quase íntima, com o lugar onde vive.
Uma ideia puxa a outra, e volto ao meu post anterior, onde resenhei “O Capital no Antropoceno”. O livro do japonês Kohei Saito tem referências muito boas, ideias boas, talvez para adiar o fim do mundo.
Uma das ideias apontadas como bem-sucedidas é o “Fearless Cities”, um movimento global informal de ativistas, organizações, vereadores e prefeitos. Segundo o site da associação, envelopado no site da Fundação Sentit Comú, que em tradução literal quer dizer “Sentir-se comum”, o movimento Fearless Cities trabalha para “radicalizar a democracia, feminizar a política e impulsionar a transição para uma economia que se preocupa com as pessoas e com o meio ambiente”.
As propostas são interessantes, há espaço para muitos debates, mas o movimento ainda chegou ao Brasil. Quem sabe a geração da Fernanda consegue trazê-lo?
O movimento fala sobre municipalização, conceito expandido a partir de uma conferência realizada em Barcelona em 2017 que de define “por sua vontade de transformar, e de acabar com o medo”. Para isso, sugerem dar nomes aos medos e pensar, coletivamente, como fazer frente a eles.
Lendo sobre a definição das cidades sem medo, lembrei-me de uma viagem que fiz à China em 2008 para participar, como ouvinte, de um seminário que se chamava Cidades Sustentáveis. Um dos palestrantes foi Enrique Peñalosa, economista e urbanista colombiano, que foi prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001, revolucionando políticas urbanas e transportes de tal forma a conseguir tirar a cidade do triste ranking de ser a mais violenta do mundo. Pois bem, após a palestra eu me aproximei de Peñalosa e perguntei: “Prefeito, o que é uma cidade sustentável?’
“A cidade que não provoca medo em seus habitantes”, respondeu-me ele.
Percebam que Peñalosa não estava se referindo a bandidos ou policiais violentos que transtornam a vida das cidades. Ele estava se referindo, naquele instante e para aquela resposta, aos prédios enormes, calçadas pequenas, carros em alta velocidade, bicicletas que podem atropelar, à falta de espaços verdes.
Em resumo, ele falava sobre uma cidade que possibilitaria a todas as meninas Fernandas um espaço para criar figuras como a barriga da pedra. Sem medo e dando asas a uma imaginação que, se desenvolvida de maneira livre, pode agregar muito ao ambiente urbano no futuro.