Uma voz dissonante desafina o coro dos contentes da COP29

Já era madrugada, mas o plenário da COP29 estava cheio. Nos bastidores, travava-se uma batalha que não é nova e se arrasta Conferência após Conferência, desde a primeira, em 1995: o valor que os países ricos devem repassar aos mais pobres para ajudá-los a enfrentar os traumas causados pelos eventos climáticos. Em 2009, na COP15, realizada em Copenhague, uma quantia foi acordada: US$100 bilhões por ano. Mas o repasse não aconteceu como esperado.

Como resultado da reunião que acabou sábado, dia 24, em Baku, capital do Azerbaijão, onde aconteceu a COP29, o que ficou decidido é que os países pobres receberão US$300 bilhões por ano até 2035. É uma promessa, não é uma obrigação.

Finalmente a última reunião da COP29 começou, com bastante atraso, o que causou muitos transtornos também para os delegados que precisavam pegar o avião de volta para casa. Eram cerca de 2h da manhã. Estavam ali representantes de quase 200 países.

O clima criado pelo presidente da Conferência,  Mukhtar Babayev, ao ler a última versão do texto final, era de vamos-acabar-logo-com-isso. Bateu o martelo, comemorou com os parceiros que estavam na mesa organizadora. Mas, aí, precisou chamar os delegados tinham se inscrito para fazer observações.

Foi quando uma voz poderosa encheu o espaço do estádio olímpico de Baku, sede da COP. A delegada Chandni Raina, da Índia, com seu bindi na testa, falou em alto e bom som:

“Não podemos aceitar isso. Este documento é só uma ilusão de ótica”.

Água fria no animado grupo que havia comemorado, no palco, junto ao presidente Babayev, ex-funcionário da empresa estatal de petróleo do Azerbaijão e atual ministro da Ecologia e Recursos Naturais. Eu estava assistindo aqui de casa, pelo site das Nações Unidas que trata das COPs, a UNFCCC , mas fiquei com muita vontade de estar lá para sentir o clima real.

Chandini Raina falou, falou e falou por cerca de dez minutos. Ora ela olhava para a câmera, ora voltava seu olhar para cima, já que o presidente estava numa espécie de palco, mais elevado do que a plateia.  Disse que sua delegação havia pedido para ser ouvida antes da batida do martelo, o que não aconteceu, declarou-se “extremamente irritada” e culpou o presidente e o secretário da COP por terem conduzido erradamente a reunião.

 Sobre o valor decidido para repasse aos países pobres, Raina foi contundente:

 “É uma quantia irrisória. Estamos extremamente decepcionados. A confiança é a base para todas as ações, e esse incidente é indicativo de uma falta de confiança. Isto também é uma falta de colaboração em uma questão que é encarada como um desafio global por todos nós, principalmente os países em desenvolvimento que não são responsáveis ​​por isso. Gostaríamos que vocês nos ouvissem e também ouvissem nossas objeções a esta adoção”, disse Chandni Raina, que é consultora do Ministério das Finanças da Índia.

Raina foi só a primeira. Seguiram-se outras vozes decepcionadas, tais como Bolívia, Peru, Nigéria, Paquistão, Maldivas, Ilhas Marshall, o representante da Associação das Nações-Ilhas do Pacífico…  A indiana destampou a caixinha de reclamações, incentivou os mais tímidos. E a COP29 não acabou em festa como queria o presidente e seus aliados.

Mas o texto que prevaleceu foi mesmo aquele que mereceu a aclamação dos que rodeavam o presidente. Daqui de casa, não consegui perceber exatamente se a maioria dos delegados também comemorou. Sei que China e Brasil ficaram mudos.  As falas dissonantes mereceram, apenas, menções. E a COP30, em Belém no ano que vem, vai ter que retomar o debate.

Nada disso é inteiramente novidade. Nem as cifras, que já em 2009 se mostravam desse porte, nem a má vontade dos países ricos em ajudar os mais pobres.  Basta dar uma volta para trás na roda do tempo. Reproduzo aqui um trecho da página 193 de “Uma Terra Somente”, livro que é uma espécie de ata da primeira Conferência Mundial para o Meio Ambiente que aconteceu em Estocolm o em 1972:

“Qualquer que seja sua boa vontade, a maioria dos países desenvolvidos ainda está afetada por certo tipo de visão bitolada. Embora não constituam mais do que um terço da população do mundo, consideram excepcionalmente difícil focalizar sua mente nos outros dois terços da Humanidade, com os quais compartilham a biosfera. Como os elefantes ao redor de uma poça dágua, eles não se dão conta de que há outros animais sedentos. É difícil fazer com que compreendam que poderão estar arruinando o solo que pisam”.

Eu aposto que hoje eles já têm essa compreensão, mas o sistema econômico de sempre está cada vez menos interessado na palavra solidariedade. Quer seja com a espécie humana, quer seja com outras espécies.

 Mas quero voltar a falar sobre a indiana Raina. Seu país, hoje a quinta economia do mundo, atualmente é a nação mais populosa do planeta, com 1,4 bilhão de pessoas (sim, um pouco mais do que a China). Raina levantou a voz, foi firme, e me lembrou a quimica ativista ambiental Vandana Shiva que, por sua vez, me apresentou, em seu livro “Terra Viva”, ao movimento Chipko.

Chipko aconteceu pela primeira vez em 1973, quando  um grupo de 27 mulheres se levantou em resistência pacífica ao desmatamento impiedoso de seus lares no estado de Uttar Pradesh.  A exploração madeireira comercial desenfreada estava destruindo suas vidas, incluindo o solo e a água dos quais dependiam. As mulheres decidiram enfrentar os madeireiros abraçando as árvores que elas não queriam que fosse desmatadas.

 Nos anos seguintes o Chipko se disseminou por vários locais, conquistando importantes vitórias, como o banimento do corte de árvores em várias províncias indianas. Uma jovem Vandana Shiva desempenhou um papel fundamental, comunicando em inglês o que estava acontecendo com o mundo exterior.

E conta, em seu livro, o cântico que as mulheres entoavam enquanto se mantinham abraçadas às árvores:

“O que as florestas produzem?

Solo, água e ar puro.

Solo, água e ar puro.

Sustentam a Terra e tudo o que ela produz”

Não sei se a famílila de Raina é ligada ao movimento Chipko, mas a força que ela demonstrou ter naquele espaço, também sugere uma comemoração especial. Afinal, vinte e oito COPs depois da primeira, com mais de metade da população mundial composta por mulheres e meninas, que representam 80% dos deslocados climáticos e suportam o peso dos impactos climáticos, as mulheres são muito pouco representadas nos lugares à mesa de discussão.

O documento final da COP29 diz que… “A síntese do trabalho futuro sobre gênero e mudança climática abrange propostas para um novo programa de trabalho sobre gênero e plano de ação de gênero, incluindo reflexões sobre sua estrutura, áreas prioritárias e atividades”.

Não é nada, não é nada… não é nada mesmo.

Mas fecho aqui a minha caixinha de reclamações. Vamos comemorar porque, mesmo num mundo em que há duas guerras em andamento, emitindo tanto carbono que nem sabemos, 198 países decidiram se reunir para falar sobre mudanças climáticas.

E lá em Busan, na Coreia do Sul, outra conferência mundial está em curso, debatendo um risco talvez ainda maior, para a humanidade, do que os eventos extremos: as micropartículas de plástico que estamos consumindo. Quanto terminar, eu conto para vocês aqui.

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About ameliagonzalez848

Produtora de conteúdo. Jornalista especializada em sustentabilidade. Ajudou a criar e editou durante nove anos o caderno Razão Social, suplemento do jornal O Globo, sobre sustentabilidade, que foi extinto em julho de 2012. Assinou a coluna Razão Social do caderno Amanhá, de O Globo. Autora do livro `Porque sim`, sobre casos de sucesso da ONG Junior Achievement. Ganhou o premio Orilaxé, da ONG Afro Reggae. Esteve entre as finalistas como blogueira de sustentabilidade no premio Greenbest com o blog Razão Social, que foi parte do site do jornal O Globo de 2007 a 2012. Foi colunista do site G1 de 2013 a 2020, assinando o blog Nova Ética Social. Estuda os filósofos da diferença, como Fredrick Nietzsche, Gilles Deleuze, Spinoza, Henri Bergson em grupos de estudo no Instituto Anthropos de Psicomotricidade. Crê na multiplicidade, na imanência, na potência do corpo humano e busca, sempre, a saúde. Tem um filho, um cachorro.
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