Zugzwang é uma expressão que, no jogo do xadrez, significa: é a sua vez de jogar. Indica movimento, necessidade de ação num momento arriscado, quando seria melhor passar a vez.
Fiz contato com essa expressão em 2009, quando assisti ao documentário “’Zugzwang”, do diretor Duto Sperry. É um filme forte, com depoimentos de pessoas que se dedicaram firmemente a estudar a evolução do desenvolvimento ecosocioambiental no mundo desde as primeiras descobertas científicas sobre a finitude dos bens naturais.
E, volta e meia, nessa era pós descobertas e verdades, de crueldades espalhadas, eu me lembro disso. O timão foi parar nas mãos de pessoas que desprezam tudo o que é diferente, natural, que querem acumular capital em detrimento da degradação do ambiente no entornou ou ampliar territórios à base de matar outras pessoas. Nada muito diferente do que era feito em séculos atrás, em época consideradas “antigas’.
Seria melhor passar a vez?
Ontem assisti ao documentário “Sinfonia da Sobrevivência”, do diretor Michel Coeli, que está fazendo parte da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e terá mais duas exibições, nos dias 21 e 25/10, no Cinesystem Frei Caneca. É um documentário filmado numa perspectiva diferente da jornalística, porque é rodado em plano subjetivo, ou seja, quando a câmera assume a ótica do olhar do espectador.

Quando terminei de assistir, pensei em Zugzwang. O que estamos fazendo na nossa vez de jogar?
Michel Coeli nos leva para bem perto das chamas dos incêndios no Pantanal. É a maior planície alagada do mundo e uma das áreas mais ricas em biodiversidade que existe, que sofre com o fogo provocado pelo homem ou resultado da seca provocada pelo desmatamento causado pelo homem.
Segundo o MapBiomas, em 2024, a área do Pantanal queimada no primeiro semestre aumentou 529% em relação à média dos anos anteriores. Junho concentrou 79% dessa área, sendo a maior já observada no bioma no período do Monitor do Fogo.
O som de “Sinfonia da Sobrevivência” é local, não há locutor narrando. Mas nem precisava. Não há palavras que possam descrever aquelas cenas. Como por exemplo o momento em que os brigadistas do Corpo de Bombeiros do Mato Grosso tentam salvar uma anta, animal de 160 quilos que teve as quatro patas queimadas pelo fogo. O olhar do bicho, captado pela câmera, um misto de angústia com espanto, me fez pensar novamente: não seria melhor passar a vez e entregar o timão aos que têm respeito pelo seu habitat?
O filme é pungente. Mostra o trabalho incansável dos bombeiros, brigadistas, veterinários e voluntários no combate ao fogo e no socorro aos animais no Mato Grosso. Além de ter muita sensibilidade. Michel Coeli tem experiência no registro de guerras. Não que tenha sido fácil, mas para ele a fumaça e o calor não o impediram de captar o momento certo das cenas para tornar mais comovente a experiência sensorial que propõe a quem está assistindo.
Em vários momentos, o espectador ouve a respiração difícil dos soldados quando estão tentando apagar o fogo antes que se alastre. As filmagens aconteceram em 2020, ano das piores queimadas no Pantanal, quando cerca de 26% da vegetação nativa do bioma foram consumidas pelo fogo segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Aqui, vale lembrar uma reunião ministerial em maio de 2020, em que o então ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu aproveitarem o momento da pandemia para abrir as porteiras. Em bom português, o que ele quis dizer foi: vamos deixar os pecuaristas e produtores agrícolas inescrupulosos desmatarem o que for necessário.
Os resultados de tanta generosidade são descritos no documentário:
“Em 2020, quase 60% dos focos de incêndios no Pantanal foram provocados por ações humanas segundo investigação dos ministérios públicos de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Os incêndios no bioma afetaram pelo menos 65 milhões de animais vertebrados e 4 bilhões de invertebrados, segundo estudo do Ibama, da Embrapa e da Cenap (Conservação de Mamíferos Carnívoros), e seus impactos sobre a biodiversidade podem ir muito além do que sabemos”.
Mas a raça humana também é diversa e pode surpreender. Há pessoas que se dedicam a tentar apagar os incêndios e salvar as vidas dos bichos, em tocantes reações de solidariedade. Além dos soldados e médicos, um personagem no filme, o coronel Barroso, chama atenção. Bombeiro aposentado, ele se move como se tivesse recebido a primeira missão de sua vida, telefona, faz pedidos a ONGs e autoridades e, finalmente, consegue 120 mil litros de água para jogar nos lugares secos.
Outra cena impactante, noturna, mostra os carros-pipa em ação. Em silêncio respeitoso, os soldados observam os animais chegando perto, driblando até mesmo o medo do barulho e dos faróis. Lançam-se desesperadamente na água e ali ficam, bebendo e se banhando. O dia seguinte amanhece já com uma vegetação também começando a mostrar seu vigor.
Basta ter vontade política, portanto. E o coronel Barroso sabe disso. Tanto que fez denúncias às Nações Unidas sobre a negligência de o estado. Foi exonerado. Vivíamos um momento bem difícil.
Além da anta, que infelizmente não suportou os ferimentos e morreu três meses depois de ter sido resgatada, uma pequena ave foi salva pela equipe heróica dos bombeiros veterinários de Mato Grosso. A cena do pássaro, depois de ter passado por uma delicada cirurgia, sendo libertado pela veterinária, que o levou dentro de uma caixinha e abriu a porta no meio da floresta, é linda.
O ecossocioeconomista Ignacy Sachs, morto no ano passado, fez a última provocação no documentário de Duto Sperry: “Até onde poderemos ir sem destruir o planeta?” Essa pergunta foi feita há quinze anos, e nesse tempo só fizemos aumentar o desmatamento, as emissões, o que gerou mais eventos extremos como a seca que acabou com a vida de muitos bichos no Pantanal. É um efeito dominó.
A pergunta é: para quê? Sabemos a resposta, mas nunca é demais continuar a perguntar.
Ainda há tempo?
A 16ª edição da Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (COP-16) começa hoje em Cali, na Colômbia. O encontro ocorre até o dia 1ª de novembro e traz como tema “Paz com a Natureza”.
Vamos acompanhar, claro, com os dedos torcidos para que o assunto passe a ter relevância semelhante ao que o clima está conseguindo ter, como quer o embaixador André Correa do Lago. Para o site da Agência Brasil, Correa do Lago, que hoje é secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, disse acreditar que os dois temas já estão começando a impactar globalmente.
“Estamos totalmente convencidos, como governo brasileiro, que nós temos que unir ao máximo o tratamento dessas questões. Então, quem está mais focado com o clima, também tem que se dar conta do quanto essa questão da biodiversidade é um tema absolutamente essencial.”, destacou ele.
