Documentário mostra estrago provocado pelos incêndios no Pantanal: em 2020, 65 milhões de animais afetados

Zugzwang é uma expressão que, no jogo do xadrez, significa: é a sua vez de jogar. Indica movimento, necessidade de ação num momento arriscado, quando seria melhor passar a vez.

Fiz contato com essa expressão em 2009, quando assisti ao documentário “’Zugzwang”, do diretor Duto Sperry. É um filme forte, com depoimentos de pessoas que se dedicaram firmemente a estudar a evolução do desenvolvimento ecosocioambiental no mundo desde as primeiras descobertas científicas sobre a finitude dos bens naturais.

E, volta e meia, nessa era pós descobertas e verdades, de crueldades espalhadas,  eu me lembro disso. O timão foi parar nas mãos de pessoas que desprezam tudo o que é diferente, natural, que querem acumular capital em detrimento da degradação do ambiente no entornou ou ampliar territórios à base de matar outras pessoas. Nada muito diferente do que era feito em séculos atrás, em época consideradas “antigas’.

Seria melhor passar a vez?

Ontem assisti ao documentário “Sinfonia da Sobrevivência”, do diretor Michel Coeli, que está fazendo parte da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e terá mais duas exibições, nos dias 21 e 25/10, no Cinesystem Frei Caneca. É um documentário filmado numa perspectiva diferente da jornalística, porque é rodado em plano subjetivo, ou seja, quando a câmera assume a ótica do olhar do espectador.

Quando terminei de assistir, pensei em Zugzwang. O que estamos fazendo na nossa vez de jogar?

Michel Coeli nos leva para bem perto das chamas dos incêndios no Pantanal. É a maior planície alagada do mundo e uma das áreas mais ricas em biodiversidade que existe, que sofre com o fogo provocado pelo homem ou resultado da seca provocada pelo desmatamento causado pelo homem.

Segundo o MapBiomas, em 2024, a área do Pantanal queimada no primeiro semestre aumentou 529% em relação à média dos anos anteriores. Junho concentrou 79% dessa área, sendo a maior já observada no bioma no período do Monitor do Fogo.

 O som de “Sinfonia da Sobrevivência” é local, não há locutor narrando. Mas nem precisava. Não há palavras que possam descrever aquelas cenas. Como por exemplo o momento em que os brigadistas do Corpo de Bombeiros do Mato Grosso tentam salvar uma anta, animal de 160 quilos que teve as quatro patas queimadas pelo fogo. O olhar do bicho, captado pela câmera, um misto de angústia com espanto,  me fez pensar novamente: não seria melhor passar a vez e entregar o timão aos que têm respeito pelo seu habitat?

O filme é pungente. Mostra o trabalho incansável dos bombeiros, brigadistas, veterinários e voluntários no combate ao fogo e no socorro aos animais no Mato Grosso. Além de ter muita sensibilidade. Michel Coeli tem experiência no registro de guerras. Não que tenha sido fácil, mas para ele a fumaça e o calor não o impediram de captar o momento certo das cenas para tornar mais comovente a experiência sensorial que propõe a quem está assistindo.

Em vários momentos, o espectador ouve a respiração difícil dos soldados quando estão tentando apagar o fogo antes que se alastre. As filmagens aconteceram em 2020, ano das piores queimadas no Pantanal, quando cerca de 26% da vegetação nativa do bioma foram consumidas pelo fogo segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Aqui, vale lembrar uma reunião ministerial em maio de 2020, em que o então ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu aproveitarem o momento da pandemia para abrir as porteiras. Em bom português, o que ele quis dizer foi: vamos deixar os pecuaristas e produtores agrícolas inescrupulosos desmatarem o que for necessário.

Os resultados de tanta generosidade são descritos no documentário:

 “Em 2020, quase 60% dos focos de incêndios no Pantanal foram provocados por ações humanas segundo investigação dos ministérios públicos de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Os incêndios no bioma afetaram pelo menos 65 milhões de animais vertebrados e 4 bilhões de invertebrados, segundo estudo do Ibama, da Embrapa e da Cenap (Conservação de Mamíferos Carnívoros), e seus impactos sobre a biodiversidade podem ir muito além do que sabemos”.

Mas a raça humana também é diversa e pode surpreender. Há pessoas que se dedicam a tentar apagar os incêndios e salvar as vidas dos bichos, em tocantes reações de solidariedade. Além dos soldados e médicos, um personagem no filme, o coronel Barroso, chama atenção. Bombeiro aposentado, ele se move como se tivesse recebido a primeira missão de sua vida, telefona, faz pedidos a ONGs e autoridades e, finalmente, consegue 120 mil litros de água para jogar nos lugares secos.

Outra cena impactante, noturna, mostra os carros-pipa em ação. Em silêncio respeitoso, os soldados observam os animais chegando perto, driblando até mesmo o medo do barulho e dos faróis. Lançam-se desesperadamente na água e ali ficam, bebendo e se banhando. O dia seguinte amanhece já com uma vegetação também começando a mostrar seu vigor.

Basta ter vontade política, portanto. E o coronel Barroso sabe disso. Tanto que fez denúncias às Nações Unidas sobre a negligência de o estado. Foi exonerado. Vivíamos um momento bem difícil.

Além da anta, que infelizmente não suportou os ferimentos e morreu três meses depois de ter sido resgatada, uma pequena ave foi salva pela equipe heróica dos bombeiros veterinários de Mato Grosso. A cena do pássaro, depois de ter passado por uma delicada cirurgia, sendo libertado pela veterinária, que o levou dentro de uma caixinha e abriu a porta no meio da floresta, é linda.

O ecossocioeconomista Ignacy Sachs, morto no ano passado, fez a última provocação no documentário de Duto Sperry: “Até onde poderemos ir sem destruir o planeta?” Essa pergunta foi feita há quinze anos, e nesse tempo só fizemos aumentar o desmatamento, as emissões, o que gerou mais eventos extremos como a seca que acabou com a vida de muitos bichos no Pantanal. É um efeito dominó.

A pergunta é: para quê? Sabemos a resposta, mas nunca é demais continuar a perguntar.

Ainda há tempo?

A 16ª edição da Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (COP-16) começa hoje em Cali, na Colômbia. O encontro ocorre até o dia 1ª de novembro e traz como tema “Paz com a Natureza”.

Vamos acompanhar, claro, com os dedos torcidos para que o assunto passe a ter relevância semelhante ao que o clima está conseguindo ter, como quer o embaixador André Correa do Lago. Para o site da Agência Brasil, Correa do Lago, que hoje é secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, disse acreditar que os dois temas já estão começando a impactar globalmente.

“Estamos totalmente convencidos, como governo brasileiro, que nós temos que unir ao máximo o tratamento dessas questões. Então, quem está mais focado com o clima, também tem que se dar conta do quanto essa questão da biodiversidade é um tema absolutamente essencial.”, destacou ele.

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About ameliagonzalez848

Produtora de conteúdo. Jornalista especializada em sustentabilidade. Ajudou a criar e editou durante nove anos o caderno Razão Social, suplemento do jornal O Globo, sobre sustentabilidade, que foi extinto em julho de 2012. Assinou a coluna Razão Social do caderno Amanhá, de O Globo. Autora do livro `Porque sim`, sobre casos de sucesso da ONG Junior Achievement. Ganhou o premio Orilaxé, da ONG Afro Reggae. Esteve entre as finalistas como blogueira de sustentabilidade no premio Greenbest com o blog Razão Social, que foi parte do site do jornal O Globo de 2007 a 2012. Foi colunista do site G1 de 2013 a 2020, assinando o blog Nova Ética Social. Estuda os filósofos da diferença, como Fredrick Nietzsche, Gilles Deleuze, Spinoza, Henri Bergson em grupos de estudo no Instituto Anthropos de Psicomotricidade. Crê na multiplicidade, na imanência, na potência do corpo humano e busca, sempre, a saúde. Tem um filho, um cachorro.
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