Amelia vive!!!

Era uma vez uma esquina.

Ora bolas, mas como esquinas são seres inanimados, sinto que vou precisar dar mais detalhes para chamar a atenção dos meus leitores.

Então, vamos lá: era uma vez uma esquina, num bairro do Rio de Janeiro que já foi mais estiloso do que é atualmente.  Por essa esquina circulava, de maneira livre e feliz, como se num sítio estivesse, uma bela galinha preta.

Agora ficou mais interessante a história, né?

Pois bem. Com uma certa frequência eu usava aquele caminho para fechar um circuito de caminhada em dias de tempo livre. Eu e Beto, meu cachorro, que não dava a menor bola para a galinha. Eu é que a achava simpática e ficava com o coração aos pulos quando a via ciscando, tranquila, mas bem próximo aos carros. Ali não tem esse horror de alta velocidade porque a esquina fica no fim de uma ladeira e tem uma curva bem fechada. Mas, como a calçada é reduzida, a galinha ficava pertinho das rodas. Ela, nem aí. Eu, aflita. Ai, ai, e se acontece o pior? Coisa de humanos que se pré-ocupam dos acontecimentos.

Como toda a história, essa também tem um clímax. Vamos a ele.

Lá um dia, descendo a ladeira com Beto, eu ouço alguém chamar meu nome: “Amelia!”. Em alto e bom som. Olhei para um lado, olhei para o outro, ninguém acenava para mim, como seria de se imaginar que fizesse uma pessoa a chamar o nome de outra. Andei mais alguns passos, e ouvi de novo: “Amelia!’. Ah, aí eu parei e fiquei olhando para a rua, curiosa e atenta. Ninguém estava passando. Por ali, só a galinha preta e… uma senhora de dentro de uma casa, na calçada onde a galinha preta ciscava, solene e feliz.

Sim, se vocês imaginaram que a galinha preta se chamava Amelia, acertaram.

Agora, podem imaginar também meu espanto?

Amelia não é um nome comum. Nunca partilhei a lista de presença com outra Amelia em toda a minha vida escolar. E é um nome de pessoas idosas, que herdei de minha avó materna. O meu Amelia não tem acento porque meu pai não reparou na hora do registro de nascimento, portanto eu gosto de marcar essa diferença, e insisto com quem assina por mim: “Sem acento, por favor! Senão, não sou eu!”. Só de cisma mesmo… E quem poderia imaginar que, um dia, eu compartilharia esse nome idoso e ortograficamente desfalcado, com uma linda galinha preta que ciscava, feliz, num ambiente totalmente urbano, sem perturbar a vida de ninguém e sem ser perturbada?

Certa de que eu tinha feito um achado, no dia seguinte compartilhei a novidade com minhas colegas de hidroginástica. Faço o exercício numa academia perto da calçada de Amelia (que será chamada assim de agora em diante). E, qual não foi minha surpresa, quando percebi que não era novidade alguma. Todo mundo sabia que a galinha preta, nossa quase vizinha, se chamava Amelia. Só se esqueceram de me contar, ok, tudoi certo.

E fiquei sabendo mais da história de Amelia. Uma história que pode ter outras tantas versões, é claro, porque não tem um único dono. É como Amelia. A história será contada, então, no subjuntivo.

 Ela teria aparecido por ali jovenzinha, talvez fugindo de alguma panela, e gostara daquele canto. A moça que mora numa casa de sobrado cuja porta dá para a calçada de Amelia, não se incomodou com a presença da nova vizinha, respeitou, e passou a oferecer um teto para Amelia descansar à noite, quando toda galinha gosta de se aninhar em algum galinheiro.

Aqui, faço um parênteses, porque estou falando, obviamente, das galinhas felizes, que têm a sorte de Amelia por terem espaço para ciscar, não daquelas pobres criaturas que vivem dentro de gaiolas de aço e só existem para serem engordadas e depois são mortas para alimentar seres humanos e outros animais. Aquelas, das grandes corporações alimentícias. Até me dá tristeza de pensar… deixa pra lá.

Pois Amelia, então, passou a ter uma rotina bem tranquila. Durante o dia ela ciscava, à noite entrava em casa, onde a vizinha tinha até arquitetado um cantinho só para ela. Em contrapartida, Amelia livrava toda a vizinhança da praga de escorpiões, já que, como sabemos, as galinhas são predadoras de escorpiões. Tá bem, não vou garantir que a esquina de Amelia seja um antro de escorpiões, mas nunca se sabe. Portanto, se aparecesse algum, não teria vida longa.

Ah, e tinha outro pagamento que Amelia dava a seus protetores. De vez em quando ela deixava um ovo ou dois, que eram saboreados pela vizinhança.

E o tempo foi passando. Já sabendo de nossa característica comum, sempre que meu caminho se cruzava com o de Amelia, eu a olhava com muito mais carinho. Poxa, afinal, não é todo dia que a gente encontra uma homônima de dois pés e bico comprido. Gostei. E, baixinho, quando passava por perto, eu lhe dizia: ‘E aí, xará! Como a vida anda lhe tratando?” E saía rindo.

Mas um dia…

Por que todas as histórias precisam ter um final? E por que os finais, em geral, têm a ver com finitude?

Recebi a notícia do sumiço de Amelia. Quem me contou foi Maitê, professora da minha hidroginástica. Há duas versões. A primeira, terrível, conta que um homem a encurralou. Amelia tentou fugir para o seu cantinho, não conseguiu. O monstro torceu o pescoço de Amelia ali mesmo e a levou.

Da segunda versão, eu gosto mais. Amelia teria lutado, se debatido, mas o homem somente a levou, ainda viva, talvez para botar seus ovos para alguma família que necessite deles.

Mas, de uma forma ou de outra, lá se foi Amelia, cumprir seu destino. De maneira trágica, se a primeira versão estiver correta, ou talvez ainda lhe sobre um tempo para ser feliz em outro canto.

Passei a mandar um olhar comprido, com alguma tristeza, para a calçada de Amelia. Não sei quanto tempo ela viveu ali, mas não importa muito essa informação. Viveu o tempo necessário para despertar um sorriso que fosse nas pessoas que descem apressadas a ladeira, preocupadas com tantas coisas que já não se dão tempo nem de respirar de verdade, quanto mais de olhar para o lado e ver que esse mundo não é só dos humanos.

A cereja do bolo dessa história vem agora.

Passeando por ali, na tarde deste sábado (dia 20) vi duas pessoas pintando o muro da calçada da Amelia. De longe, não dava para perceber. Mas, quando cheguei bem pertinho, vi a homenagem que o artista plástico Odylo Falcão, mestre da arte urbana, que enfeita nosso bairro de cores e alegria, estava fazendo à Amelia. É a foto que enfeita este texto.

O mural ainda não está pronto, tanto que ainda não tem a assinatura do mestre. Mas eu não aguentei, e trouxe aqui para vocês a história, com a cereja do bolo. Veja na foto abaixo, ainda inacabado.

Amelia vive!! Para mim, sem acento em seu nome. Assim me sinto mais ligada a ela.

A foto foi feita pela colega Barbara, da minha turma de hidro.
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About ameliagonzalez848

Produtora de conteúdo. Jornalista especializada em sustentabilidade. Ajudou a criar e editou durante nove anos o caderno Razão Social, suplemento do jornal O Globo, sobre sustentabilidade, que foi extinto em julho de 2012. Assinou a coluna Razão Social do caderno Amanhá, de O Globo. Autora do livro `Porque sim`, sobre casos de sucesso da ONG Junior Achievement. Ganhou o premio Orilaxé, da ONG Afro Reggae. Esteve entre as finalistas como blogueira de sustentabilidade no premio Greenbest com o blog Razão Social, que foi parte do site do jornal O Globo de 2007 a 2012. Foi colunista do site G1 de 2013 a 2020, assinando o blog Nova Ética Social. Estuda os filósofos da diferença, como Fredrick Nietzsche, Gilles Deleuze, Spinoza, Henri Bergson em grupos de estudo no Instituto Anthropos de Psicomotricidade. Crê na multiplicidade, na imanência, na potência do corpo humano e busca, sempre, a saúde. Tem um filho, um cachorro.
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4 Responses to Amelia vive!!!

  1. Avatar de Lena Miessva Lena Miessva disse:

    Adorei a história, Amelia (sem acento rsrsr). E também vou ficar Amelia em uma casa botando seus ovos para alimentar alguèm.

  2. Avatar de Felippe, o vizinho Felippe, o vizinho disse:

    Adorei!

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