Tuvalu, prestes a ser engolida pelo mar, quer ser a primeira nação digital do planeta

Com pouco mais de onze mil habitantes, a pequena nação-ilha do Pacífico, Tuvalu, está pleiteando tornar-se a Primeira Nação Digital do mundo. A ideia é de Simon Kofe, ex ministro dos negócios estrangeiros do país, que defende sua invenção de maneira insofismável:

“As leis internacionais agora precisam lidar com nuances, como os níveis do aumento do mar, que  ameaçam fazer desaparecer nações como Tuvalu. O requerimento convencional para um ´território definido´ está, assim, sendo desafiado. Necessita uma reavaliação’, defende ele.

A primeira vez que ouvi falar sobre Tuvalu foi em 2009. Eu editava o caderno “Razão Social”, encarte do jornal  “O Globo” sobre desenvolvimento sustentável, e fazia a cobertura das Conferências das Partes sobre o Clima (COPs), que hoje são famosas, mas na época não eram. A COP15, que aconteceu em Copenhague, teve como novidade o presidente Obama, democrata recém-eleito dos Estados Unidos, esperado com ansiedade pelos ambientalistas.

Reprodução : Romaine W/Shutterstock
 

A expectativa era que Obama ancorasse a assinatura de um tratado que substituísse o de Quioto, que estipulara metas de redução de emissões de carbono mas não chegara a ser assinado pela nação mais rica. A cúpula de 2009, no entanto, fracassou nessa ambição e frustrou o mundo quando terminou sem um acordo a respeito da necessidade de que o aumento na temperatura global não ultrapasse os 2° C no fim do século. Aqui vale um parênteses: em novembro do ano passado, segundo o Serviço de Monitorização das Alterações Climáticas do Copernicus (C3S), já atingimos os 2° a mais, mesmo com o Acordo de Paris assinado em 2015.

Fecha o parênteses, voltando a 2009: enquanto os negociadores da COP15  tentavam furar bloqueios, a sociedade civil fazia barulho em Copenhague, onde acontecia a conferência. A recém-criada 350.org , que chama atenção para o limite suportável de partículas de carbono na atmosfera (já passamos muito disso), ajudou a organizar uma manifestação  na entrada do Bella Center, onde os líderes se reuniam. Jovens tuvaluanos aproveitaram os holofotes mundiais para gritar palavras de ordem e espalhar ao mundo a angústia de pertencer a um dos países do Pacífico condenados a desaparecer por causa do aumento do oceano, fenômeno causado pelo aquecimento global que, por sua vez, é causado pelo excesso de carbono. E eu ouvi seus gritos, mesmo aqui, a mais de dez mil quilômetros de distância.

Daquele dia em diante, nunca mais deixei de acompanhar a história dos habitantes dessa linda ilha. Embora eu nunca tenha ido lá, quase me sinto uma tuvaluana. Adoro suas cores, a intimidade que têm com o mar que será seu vilão fatal. Na sequência, o drama de Tuvalu chamou minha atenção também para a história dos refugiados ambientais, termo criado em 1985 para designar as pessoas forçadas a deixar seu habitat natural por conta de eventos climáticos. Foi assim que, no ano seguinte, em 2010, assistindo ao documentário “Climate Refugees’, dirigido e produzido por Michael P. Nash, as duas histórias se encontraram e eu fiz o link.

Segundo um relatório do Banco Mundial, até 2050, 216 milhões de pessoas em todo o mundo poderão ser obrigadas a se mudarem por seca ou tormentas. Michael Nash mostra, no laureado documentário que fez parte do Festival do Rio daquele ano, a faceta mais dramática, humana, dos eventos causados pelas mudanças climáticas.

Entrevistada pela equipe de filmagem, uma dona de casa tuvaluana dá um depoimento que jamais esqueci. Ela começa contando sua rotina, que incluía plantar e colher, no terreno de sua casa, os alimentos que consumia. Mas a água do mar tornara a terra salgada, portanto imprópria para essa prática. Além de contar com ajuda humanitária, uma das soluções para a dona de casa seria migrar para a vizinha Nova Zelândia, mas aquele país impunha limites para receber habitantes de Tuvalu: a pessoa tinha que ter até 45 anos, e uma profissão.

“Estão me condenando à morte”, disse ela, num desabafo realista.

Hoje a situação é outra. O país que está “abrindo as portas” para os refugiados de Tuvalu é Austrália, liderado pelo primeiro-ministro Anthony Albanese. O governo australiano se compromete a receber 288 cidadãos tuvaluanos por ano, num acordo que não deixa bem claro o que será cobrado em troca da gentileza.

Pesquisando sobre o tema para trazer a vocês, chamou-me a atenção a reportagem do jornal britânico “The Guardian’, de novembro do ano passado. Trocando em miúdos, a Austrália concede a graça em troca de se tornar uma espécie de guardiã de Tuvalu. Isso equivale a um veto australiano à celebração de acordos de segurança com outros países.

Como pano de fundo, a briga fica entre reconhecer Taiwan como país independente, o que  o novo governo tuvaluano parece preferir, segundo reportagem da Al Jazzera, ou aceitar a proteção da China. Austrália chega oferecendo o ombro amigo, desde que Tuvalu não se aproxime dos chineses.

Há ainda um outro pano de fundo, que seria o fato de que, uma vez “nas nuvens’, a nação ilha, mesmo tendo desaparecido fisicamente, continuaria tendo direito às suas 200 milhas. Por consequência, à pesca de atum, frequente na região. Follow the money, pois.

Independentemente da situação geopolítica que esteja sendo a bússola atual, fato é que o novo governo de Tuvalu tomou posse em fevereiro deste ano, e dele não faz parte o ministro Simon Kofe, que estava na luta por tornar seu país digital. Doze nações já tinham se tornado parceiras no projeto que, se prosseguir, de fato vai ser uma espécie de cartão de visitas da nossa incapacidade, da nossa era antropocena.

Ano após ano, países se juntam para tentar legitimar novos padrões de produção e consumo  que permitam frear um pouco as emissões de carbono que tanto mal estão causando à humanidade. Vejam bem, eu não disse ao planeta, porque este vai prosseguir mesmo depois que a raça humana assumir seu lugar como a única raça capaz de destruir seu próprio habitat.

Termino esse texto com a fala do ministro Kofe, que proporciona uma triste, mas necessária, reflexão. Não a todos, porque infelizmente sabemos que nossa civilização também é composta por indivíduos que dão de ombros e seguem, e seguirão, vivendo o hoje sem respeitar o ambiente.

“Senhoras e senhores, imaginem-se de pé no último caminho de terra que você pode chamar de casa. Imaginem-se vendo este caminho desaparecer debaixo dos seus pés. Isto não é um pesadelo distante: é uma realidade iminente para o meu povo em Tuvalu”.

Avatar de Desconhecido

About ameliagonzalez848

Produtora de conteúdo. Jornalista especializada em sustentabilidade. Ajudou a criar e editou durante nove anos o caderno Razão Social, suplemento do jornal O Globo, sobre sustentabilidade, que foi extinto em julho de 2012. Assinou a coluna Razão Social do caderno Amanhá, de O Globo. Autora do livro `Porque sim`, sobre casos de sucesso da ONG Junior Achievement. Ganhou o premio Orilaxé, da ONG Afro Reggae. Esteve entre as finalistas como blogueira de sustentabilidade no premio Greenbest com o blog Razão Social, que foi parte do site do jornal O Globo de 2007 a 2012. Foi colunista do site G1 de 2013 a 2020, assinando o blog Nova Ética Social. Estuda os filósofos da diferença, como Fredrick Nietzsche, Gilles Deleuze, Spinoza, Henri Bergson em grupos de estudo no Instituto Anthropos de Psicomotricidade. Crê na multiplicidade, na imanência, na potência do corpo humano e busca, sempre, a saúde. Tem um filho, um cachorro.
Esta entrada foi publicada em Uncategorized. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário