Fim de tarde, início de noite. No território urbano das grandes metrópoles, este é um momento tenso, pessoas buscando transporte na saída do trabalho. Cansaço, trânsito pesado, barulho, estresse.

Nessa mesma hora, numa floresta, apesar da aparência de alguma quietude, a situação não é menos nervosa. Muitas espécies de animais começam a procurar alimento. Herbívoros e pássaros buscam sementes e plantas. Já os carnívoros causam alvoroço, como se pode imaginar. A tensão está no ar, com a corrida dos bichos para se defender e defender seus filhotes e ovos.
Uma trilha sonora quase aflita acompanha todo este movimento. Piados, uivos, berros, sons diversos que para os humanos, acostumados ao barulho de máquinas e sinais sonoros, podem soar como sinfonia, ora densa como as de Beethoven, ora suaves como um Vivaldi.
Na semana que passou, estive na Reserva Natural Vale, próxima ao município de Linhares, no Espírito Santo, e de lá trouxe essas sensações e as reflexões que compartilho com vocês aqui. São 23 mil hectares de espaço preservado na Mata Atlântica. Junto ao Cerrado, a Mata Atlântica forma a dupla de biomas brasileiros mais povoados. A RNV foi idealizada nos anos 50 por Eliezer Batista, primeiro presidente da companhia que, à época, chamava-se Vale do Rio Doce. E desde 1978 é um espaço oficial de conservação e pesquisa científica.
Acima de tudo, é um lugar onde se respira natureza, ar puro. No meu caso, que estudo e pesquiso as questões ecosocioambientais, é claro que um local assim preenche vários nichos de pensamento e oferece uma enorme bagagem de análise. Além de ser um oásis, perfeito para meditar, sobretudo no fim de tarde, como vocês puderam constatar.
A primeira grande questão que me vem à cabeça é prioritária e vem se encorpando a cada conferência mundial de meio ambiente, a cada encontro de ambientalistas, a cada conversa: como equilibrar a proteção de áreas relevantes do ponto de vista ambiental com as necessidades das pessoas que gravitam no seu entorno? O que oferecer, sem impactar, sem tirar a voz dos pássaros, sem nublar o céu com fumaça, sem encher os rios de sujeira, sobretudo sem tirar árvores de maneira ignorante e fútil?
As perguntas se sucedem: como convencer pessoas que sobrevivem dos bens da floresta, que não desmatar é lucrativo?
Aprendi muito com o que já vem sendo feito na Reserva, e não é pouca coisa. Dois dias de caminhadas e conversas com alguns pesquisadores, a maioria jovens em que se vê no olhar o desejo de fazer dar certo, renderam dois caderninhos cheios de anotações. E algumas ideias, claro. Não sou de desperdiçar pensamento.
Preciso confessar: durante algum tempo, meus estudos, entrevistas, presença em palestras e conferências, levaram-me a não conseguir entender a conservação e o desenvolvimento como uma possibilidade. A palavra silvicultura me causava arrepios. Mas o tempo e as experiências foram mudando o leme da minha convicção. E, hoje, já abro espaço para acolher os bons argumentos.
No passeio que fiz com dois jovens pesquisadores da Reserva aos talhões onde são conduzidos experimentos com árvores para fins não comerciais, outras expressões surgiram. Restauração inclusiva, resultado positivo, expertise a serviço das pesquisas, agrofloresta, incubadoras de conhecimento… e eu ali, absorvendo tudo. De repente, me vi com a mesma chama, acreditando que vai dar certo. A humanidade não pode perder.
E como a gente tende a fazer contato com o que mais nos afeta, dos muitos arboretos da Reserva aos quais fui apresentada, minha atenção se voltou para o arboreto urbanístico. São dez hectares, com quase 200 espécies de árvores que estão sendo estudadas com o objetivo de se descobrir quais delas mais se adaptam ao território urbano.
Já explico o motivo de meu interesse. Uma pesquisa da ONU divulgada no ano passado prevê que 68% da população mundial morarão em cidades até 2050. Mas, como se sabe, cidades podem ser bem desconfortáveis, sobretudo quando se tornam ilhas de calor por falta de árvores. Ocorre que muitas árvores são plantadas de forma equivocada, e suas raízes acabam estragando as calçadas, desligando fios, rompendo canos.
Dessa forma, o resultado da pesquisa do arboreto urbanístico pode fornecer aos prefeitos interessados uma grande ajuda. Adorei a espécie Chuva de Ouro (foto), imaginei uma avenida cheia delas. Fica a dica para as equipes municipais que lidam com arborização.
A tirar pela minha experiência ali, penso que a educação ambiental, por si só, é um ativo (para usar a linguagem corporativa) da Reserva que não pode ser desprezado. Acompanhei – de longe, para não atrapalhar – um grupo de jovens adolescentes de uma escola municipal no projeto Passarinhando nas Escolas. Guiados por biólogos e guias especializados, eles passaram boa parte do dia na Reserva, aprendendo a reconhecer aves e o papel que elas desempenham na conservação do meio ambiente.
Aqui vale dizer: em vez de terem os olhos grudados numa tela, que alegria ver aqueles jovens observando pássaros no céu!
Aliás, a passarinhada da Reserva é um capítulo à parte. Gente, é uma experiência única, subir numa torre de 25 metros de altura, com toda a segurança, e ficar ouvindo e vendo todas as espécies de aves que você jamais imaginou.
Bem, aqui faço outra confissão: não sou muito simpática a viver nas alturas, meu negócio é chão. Assim mesmo, subi até quase o meio do caminho, acompanhada por Marcio, Brener, Roberta, Carla, meus parceiros de aventura. Para quem só conhecia pica-pau da história em quadrinhos, imaginem meu êxtase quando vi alguns tipos, cada um com um piado diferente. E Brener, jovem doutor em meio ambiente e pássaros, que tem na Reserva um campo de estudo, a nos elucidar com dados quase biográficos de cada espécie que piava.
Há muito mais para contar, mas por enquanto fico por aqui, para não cansar o leitor. Volto em outro post. Para não perder o hábito, peço ajuda a um autor e costuro assim meus pensamentos finais, entre teoria e prática.
Ignacy Sachs se autointitula um ecosocioambientalista. É polonês, morou no Brasil durante algum tempo, em que ajudou muito os órgãos ambientais a construírem projetos de desenvolvimento sustentável. Hoje ele está em Paris, já um senhor idoso, como professor emérito da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Tem vários livros, mas o que eu mais gosto é “Terceira Margem” (Ed. Companhia das Letras), quase autobiográfico, em que ele conta sua participação em todas as principais conferências da ONU sobre meio ambiente.
Sachs escreve, em 2007, sobre a “multiplicação de reservas naturais” e diz o que pode ser um caminho para esses espaços.
“Eu seria favorável à criação de ‘reservas de desenvolvimento’ em terrenos que já sobreviveram à ação do homem e precisam ser reabilitados por meio de projetos agroflorestais e de plantação de florestas para uso econômico”.
O objetivo, diz ele, é “manter de pé a floresta”, para que prevaleça o “bom uso da natureza, sem subtraí-la do desenvolvimento”.
É este o caminho. E a bioeconomia pode ser uma das soluções.
*Amelia Gonzalez viajou a convite do Instituto Cultural Vale, que realiza atualmente no Espírito Santo as exposições ‘O extraordinário universo de Leonardo Da Vinci” e “Memórias do Futuro’.

Ótimos textos e ótimo trabalho Amélia. Parabéns e um grande abraço
Jaime
Poxa, que bom ter você por aqui, isso sim. beijo
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