No início da semana, pouco antes de começar a sessão emergencial da Assembleia Geral da ONU que ainda está debatendo uma resolução sobre a ofensiva militar russa na Ucrânia, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) lançou a segunda parte do relatório divulgado em agosto do ano passado. Com tintas ainda mais fortes, os cientistas do Painel – criado em 1988 para atualizar dados sobre efeitos das mudanças climáticas no planeta – avisam que o tempo não está contando a favor da humanidade na batalha contra o clima.

Seria correto apontar para uma imensa contradição entre os dois eventos que citei acima?
Na Assembleia, as nações põem em discussão a ofensiva da Rússia tendo como base a Carta das Nações Unidas. Trata-se de um “guia atemporal para enfrentar os desafios que partilhamos e corrigir as fragilidades do mundo”, assinado há 75 anos, que prega valores bem esquecidos. No relatório do IPCC, a busca é para conscientizar as pessoas de que há uma revolução em curso, da qual a humanidade sairá, certamente, como perdedora. Ambos têm as Nações Unidas como base.
Onde eu vejo o paradoxo? É que um evento não dialoga com outro. Como se nossa referência não fosse o mesmo planeta. Como se não estivéssemos vivendo a degradação dos bens naturais e os eventos extremos causados pelas alterações climáticas que, segundo os cientistas já provaram, são de responsabilidade das atividades humanas.
O relatório do IPCC, chamado AR6, é um trabalho feito por 330 cientistas que não ganham um tostão para emprestar seu conhecimento à humanidade. Ao todo, são 34 mil estudos que encerraram uma mensagem forte: aproximadamente 3,3 a 3,6 bilhões já vivem em contextos altamente vulneráveis às mudanças climáticas. A crise climática está instalada e é inseparável da crise da biodiversidade, da pobreza e desigualdade sofridas por essas pessoas.
Esta é a questão central: vidas de pessoas estão em risco. Vidas de bichos, plantas e corais também. Mas há nações que se ocupam em criar conflitos que comprometem o valor da vida. O que terá mais peso do que isto?
Feito meu desabafo, certa de que não terei resposta para minha indignação, voltemos a centrar no relatório, que pode ser lido aqui em espanhol. As notícias não são nada boas para quem quer preservar vida, e vida com qualidade. Os cientistas dão conta de que metade da população mundial já está sofrendo, por exemplo, por falta de água. E uma, em cada três pessoas, está exposta ao “estresse térmico mortal” – muito frio ou muito calor – fenômeno que deve aumentar para 50% a 75% até o final do século. América Central e América do Sul estão altamente expostas às condições climáticas, vulneráveis à seca e, consequentemente, à insegurança alimentar.
O relatório assume que houve progresso – não está claro de quanto tempo para cá – no planejamento e implementação de adaptação em várias regiões. No entanto, aponta uma desigualdade. E há também, talvez por falta, justamente, de uma concertação internacional, atitudes que apenas aparentam dar certo.
“Muitas iniciativas priorizam a redução imediata e de curto prazo dos riscos climáticos, o que diminui a oportunidade de adaptação que realmente leve à transformação”, diz o texto.
O biólogo marinho alemão Hans-Otto Pörtner, copresidente do Grupo de Trabalho do relatório AR6, falou à imprensa e trouxe alguma esperança. É possível ainda pensar em recuperação.
“Ao restaurar ecossistemas degradados e conservar de forma eficaz e equitativa 30 a 50% da terra, água doce e habitats oceânicos da Terra, a sociedade pode se beneficiar da capacidade da natureza de absorver e armazenar carbono, e podemos acelerar o progresso em direção ao desenvolvimento sustentável, mas finanças e políticas adequadas apoio são essenciais”, disse ele.
Quero me ater a este depoimento porque ele aponta uma saída. Pörtner fala em restaurar ecossistemas degradados, o que é bem diferente de fazer compensações, como querem os estudiosos adeptos à “economia verde”. Neste ponto, vou compartilhar com vocês a visão de Joel Bakan, que lançou em 2020 o livro “New Corporation”, uma continuação do “The Corporation” (2003), sempre com críticas construtivas ao papel das empresas na recuperação do estrago, grande parte causado justamente desde a Revolução Industrial, no século XVIII.
Bakan combate o mecanismo das compensações, que dá às empresas o direito de poluir ou usar ao máximo um bem natural como a água, desde que elas compensem em outro lugar, financiando projetos ou outros sistemas. Para ele, embora seja incerto, para o meio ambiente, contar com os benefícios das compensações, é real o dano causado por elas às pessoas. Este é o ponto. O relatório do IPCC fala em poupar vidas, em melhorar a qualidade de vida. É disso que se trata.
“Se uma companhia de energia holandesa compensa as emissões de uma nova usina a carvão financiando a preservação da floresta em Uganda, seis mil habitantes da floresta são despejados pelo governo ugandense, por exemplo”, conta Bakan em seu livro, que infelizmente ainda não tem tradução no Brasil.
Combater a crise climática exige um esforço coletivo por parte, sobretudo, das empresas que fazem seu negócio com base nos bens naturais. Será preciso que as pessoas também se acostumem com um sistema diferente, onde menos tem que ser mais. A essa união se chama concertação. E é preciso que se tenha um objetivo comum. No caso, nada menos do que a vida de tantos que se tornarão cada vez mais vulneráveis às secas, tempestades, furacões. O relatório tem, por exemplo, um capítulo dedicado às cidades, que valeria muito a pena ser estudado com afinco pelos prefeitos.
Enquanto escrevo, passo os olhos pelos sites e fico estarrecida com as fotos dos horrores da guerra. E me vem uma estranha sensação de que estou vivendo em outra dimensão. Ainda mal terminamos de enfrentar uma pandemia, os efeitos adversos das mudanças climáticas se aceleram, e mesmo assim há países se preparando para uma guerra.
Que o valor da vida fale mais alto, nem se que seja por um breve momento, diante de tantos absurdos.