Comunidade de Jauari, município de Moju, banhada pelo rio do mesmo nome, a 88 quilômetros de Belém (foto). O calor é imenso, e o tempo ali parece que pede licença antes de passar. Cândido Pereira e Maria do Rosário, fundadores da Associação Jauari, vestidos com sua melhor roupa, estavam a postos à minha espera para contar sua experiência para uma reportagem sobre desenvolvimento local que eu faria para o caderno “Amanhã”, do Globo (minha viagem foi feita a convite da empresa Natura, que tem um trabalho importante no Norte do país). O sorriso é econômico, o aperto de mão é caloroso e a vontade de contar histórias é imensa. De maneira clara e generosa, sem poupar informações importantes mas omitindo o que não queriam compartilhar, eles vão tecendo o fio do novelo que nos levam a uma vida cheia de privações. A comunidade não tem luz, o acesso só pode ser feito de barco e, mesmo tenso sido erguida sob palafitas, a casa onde moram às vezes é invadida pelas águas do rio em época de cheia. Por isso não se vê tapetes ou cortinas e as camas são redes. Mas o ambiente é bem arrumado, limpo, de chão encerado e panelas brilhando.
O casal está ali há vinte anos e não pretende sair. Sobretudo depois que, em 2004, decidiu se associar a outras pessoas, em rede, para tentar melhorar a vida e conseguiu. É assim, segundo os especialistas, que nascem as oportunidades de desenvolvimento econômico em regiões de difícil acesso. Exatamente o que eu estava procurando ali.
É Cândido quem toma a palavra. Como fundador da Associação Jauari, cuja sede é num galpão de madeira bem cuidado perto de sua casa, ele foi um dos primeiros a saber que o murumuru – fruto de uma árvore espinhenta que cresce a rodo na região e que ele arrancava para facilitar a colheira do açaí, poderia gerar renda:
— Eu sempre trabalhei com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju e foi lá que ouvi a proposta de trabalhar com o fruto do murumuru. Pensei: que troço doido! Querem comprar o fruto de uma árvore que eu arranco fora para não ferir a gente – disse ele.
A oferta era da Natura, que descobriu um jeito de transformar o fruto em sabonete. Como empresa que quer ser protagonista de ações em prol do desenvolvimento sustentável, ela cumpriu toda a legislação para extrair o fruto e deixar algo em troca para a terra. E agregou um quesito: a negociação só seria feita se os proprietários, futuros fornecedores, se juntassem numa associação. Segundo Marcelo Cardoso, vice-presidente de Desenvolvimento Organizacional e de Sustentabilidade da Natura, essa iniciativa seria uma forma de estruturar o crescimento da comunidade:
— Queremos fortalecer o tecido social que vai permitir o fornecimento dos insumos que precisamos. Só assim poderemos atingir nossa meta, que é de elevar bastante nosso consumo de matérias-primas do Norte do país. Este é um desafio — disse ele.
O desafio maior, no entanto, segundo o diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Itamar Silva, é das próprias comunidades, para não se manterem dependentes dos projetos das corporações que as impulsionam. Itamar constata que a autonomia é decisiva para o sucesso de qualquer parceria desse tipo:
— Quando a associação fica muito presa à empresa que está motivando a união das pessoas, o que eu vejo é muito desencanto, falta de garra, de crença, de motivação. O ser humano é gregário, mas a própria conformação da sociedade hoje empurra as pessoas para soluções muito individuais. Cada vez mais se consome um estilo de vida onde o sucesso acontece na medida em que você, sozinho, consegue se dar bem. A questão mais geral do associativismo como um bem comum, a qualidade de vida, o diálogo, a participação mais abrangente, tudo isso fica em segundo plano – disse Itamar.
Distantes dessas divagações teóricas de especialistas, Candinho (como é chamado na associação que fundou) e Rosário, mesmo ao cuidarem de si e da família já estão dando uma oportunidade melhor de vida a não menos que 27 pessoas entre filhos, noras, genros, netos e agregados. Assim é a família no Norte. A conversa com os patronos se estende, às vezes solta, às vezes emperrada. Como quando eu resolvo querer saber sobre datas ou valores em dinheiro:
— Ih, isso aí é difícil para mim, viu? Já tentei me organizar, mas quem disse que consigo? Aqui na Associação é raro uma pessoa saber quanto tem e quanto gasta — diz Candinho, divertido.
Sendo assim, salvo engano, a Associação Jauari nasceu em 2004 com um objetivo bem definido: reivindiar luz para a comunidade. Até agora não conseguiu isso, mas com a venda do murumuru para a Natura, Candinho, que está aproveitando para fazer um pé de meia, acredita que vai conseguir garantir um futuro promissor para Jauari.
A essa altura da conversa, eu já tinha sido convidada para entrar na casa, tomar uma bela cumbuca de açaí e conhecer o resto da enorme família. Com 66 anos, tendo nascido na região onde vive, Candinho é a imagem da teoria desenvolvida por especialistas em associativismo. A ferramenta usada por ele para reforçar seu papel como líder (a figura do líder é sempre necessária. Podemos questionar, mas…) é a conversa e seu próprio exemplo. Mas outro dia ele teve que ir além. Foi quando, preocupado com a assustadora presença de jovens usando drogas na região, decidiu se inscrever na escola da cidade:
— Foi para dar o exemplo. Eu passava com os livros debaixo do braço e parava na rodinha dos moleques que não queriam estudar para ficar fumando maconha e dizia: Olha aí, meu caso! Vocês vão querer ficar de fora da escola? Façam isso não! Lá é tão bom que eu, mesmo já mais velho do que vocês, resolvi estudar – disse ele, garantindo que teve algum sucesso na empreitada.
Outra associação que visitei nessa mesma viagem, feita em outubro do ano passado, foi a Cofruta, já muito conhecida Brasil afora. Cooperativa de fruta de Abaetetuba, ela é outro exemplo do que se as pessoas se juntarem em prol de um mesmo objetivo, é possível dar certo. A Cofruta existe desde 2002, começou com 60 pessoas e hoje tem o dobro de cooperativados. No primeiro ano, vendeu oito toneladas de açaí. Em 2011, já teve encomenda de 42 toneladas. Tem parceria com a Natura, com a União Europeia e toma para si uma função: levar adiante a mensagem do cooperativismo:
— A dificuldade maior está em convencer as pessoas de que elas vão ter que trabalhar em prol de um coletivo, não para sucesso individual. É difícil no início, mas depois fica fácil — disse Raimundo Brito de Almeida, coordenador financeiro da Cofruta.